Arte através da I.A. - da suspeita à aceitação

O meu primeiro contacto com imagens geradas por IA foi através do Midjourney. Lembro-me de ter ficado atónito a olhar para a galeria com aquele efeito WOW nos olhos. No entanto, imediatamente outro olhar se sobrepôs e pude perceber que, embora as imagens fossem esteticamente impactantes, eu não ficava mais do que 3 a 5 segundos a olhar para cada uma delas. Ora, um dos atributos da arte é exatamente a capacidade de promover um diálogo entre o observador e o objeto, permitindo que dessa interação nasça algo de novo. Com aquelas imagens, para além do WOW de espanto, não havia qualquer diálogo entre mim e cada uma dessas imagens. E foi a partir desta experiência inicial que escrevi o meu primeiro post no Facebook, questionando-me:

Estaremos a entrar numa era em que a arte sai das mãos do artesão e passa para as mãos do contador de histórias, ficando a execução a cargo da I.A.? E sem as mãos do artesão e a sua sensibilidade e intuição, poderemos continuar a chamar arte ao resultado final?


Foi certamente uma reflexão oportuna e, com base nisso, passei ao segundo post onde fiz uma síntese de algumas teorias da arte avançando com a minha própria teoria:


Depois de escrever o post anterior, fiquei a refletir sobre o assunto. Será que as obras criadas pela I.A. podem ser arte? E o que é que seria arte, afinal? Esta não é uma questão nova, e existem muitas correntes filosóficas e teorias sobre o assunto.

Uma dessas teorias, conhecida como a teoria da arte como imitação diz: Uma obra é arte se, e somente se, for produzida pelo homem e imitar algo.

Esta teoria tinha um problema. Pôs de parte todas as correntes que não tentavam imitar o mundo real, como o abstracionismo, o surrealismo e até o impressionismo. Só as obras figurativas ou que tentavam captar a realidade do mundo visível, imitando-o, seriam consideradas arte.

Para acolher estas novas correntes, surgiu então uma nova teoria, a teoria da arte como expressão, que afirmava: Uma obra é arte se, e só se, exprimir os sentimentos e as emoções do artista.

Aqui tínhamos outro problema: como saber se a obra expressava ou não os sentimentos do artista? No máximo, poderia evocar emoções e sentimentos no observador e estes poderiam ser atestados pelo próprio observador, mas o facto de o artista ter ou não sentido algo enquanto pintava permanecia no domínio da especulação.

Para resolver este problema, surgiu uma terceira teoria, a teoria formalista, que afirmava: Uma obra de arte é arte se, e só se, provocar emoções estéticas nas pessoas.

Esta teoria centra-se nas reacções do observador à obra, e se houver uma emoção estética, então esta seria considerada arte. O problema com esta teoria é que pessoas diferentes podem ter reacções diferentes e, neste caso, como qualificar a obra? Esta terceira teoria, no entanto, poderia englobar todas as formas de expressão, inclusive as obras criadas por uma I.A., pois o foco seria a reação causada no observador e não a obra em si.

Diante de tudo isso, e refletindo sobre o assunto, talvez precisemos de uma nova teoria que eu poderia chamar de Teoria da Arte como Função Espelho, que poderia dizer algo como: Uma obra é arte se, e somente se, colocar o observador diante de si mesmo numa interpelação que provoque um questionamento, seja este positivo ou negativo.

Aqui já não estaríamos no domínio da simples reação estética.

Ora, a função espelho é algo que só pode ser impresso magneticamente no objeto se houver um coração envolvido e, portanto, um canal para a alma se expressar. Esta impressão é feita pelo próprio coração do artista, se este estiver neste diálogo interno ao criar. Este diálogo não tem que acontecer apenas com pessoas "espirituais"; um ateu pode imprimir mais alma no seu trabalho do que um crente.

Quando a função espelho é impressa no objeto, todos aqueles que o observam serão remetidos para si mesmo, e ocorrerá um diálogo entre a pessoa e a própria obra. Mas não poderia esta teoria ter o mesmo problema que a anterior, que dizia que a arte é tudo aquilo que provoca uma emoção estética no observador deixando a conclusão à subjetividade daquilo que cada um sente? Não, porque um espelho não deixa ninguém indiferente, ele reflecte sempre alguma coisa, que pode até ser desagradável, mas algo é sempre reflectido.

Então, com base nesta teoria, as obras criadas por uma I.A. não seriam arte, porque não há um coração envolvido capaz de imprimir na obra essa função espelho. Embora possam provocar uma reação estética, e por isso serem consideradas arte do ponto de vista da teoria formalista, não provocariam um questionamento interno, uma catarse, um mergulho em nós próprios, e por isso não seriam arte do ponto de vista da teoria da arte como função espelho.


Com esta reflexão, o assunto estava resolvido para mim e eu podia continuar com a minha vida. No entanto, não foi isso que aconteceu. Uma inquietação interior não me deixou satisfeito com o resultado desta mesma reflexão. E foi assim que surgiu o terceiro post:


Depois de ter questionado na primeira parte se as obras criadas por uma I.A. poderiam ser consideradas arte, e se estaríamos a entrar num novo paradigma em que a arte deixaria as mãos do artesão para passar para as mãos do contador de histórias, e depois de também ter percorrido algumas teorias da arte na segunda parte e ter percebido que na teoria formalista, a I.A. seria considerada arte por provocar emoções estéticas em quem observa, avancei nessa mesma segunda parte com uma outra teoria a que chamei arte como Função Espelho. Ou seja, a arte seria tudo aquilo que consegue levar o observador de volta a si mesmo, numa introspeção que induza a uma reflexão e a um mergulho no seu interior. Concluí que essa função espelho só pode ser impressa na obra se houver um coração presente, ou seja, se houver Alma. Assim, se uma obra for criada 100% por uma I.A., ela não poderia ser considerada arte à luz dessa teoria, pois esse coração não existe.

No entanto, não fiquei satisfeito com as conclusões e uma nova reflexão surgiu logo de seguida. Seria possível usar uma I.A. como ferramenta de trabalho, da mesma forma que um pintor usa um pincel, um escultor usa um cinzel e um designer um software específico? Seria possível impregnar de alma uma obra criada por uma I.A. se o artista estiver no comando dessa criação, conduzindo a I.A. para onde ele quer que ela vá sem a deixar à solta? Foi este exercício que propus a mim mesmo quando compus 21 imagens numa coleção a que chamei "Treasure of the World".

As imagens que ilustraram os dois primeiros posts foram criadas a 100% pela I.A. e por isso, apesar de esteticamente impactantes, sinto-as frias, sem alma e sem vida. As imagens para esta coleção também foram criadas pela A.I., mas fui eu que a orientei para os resultados que queria alcançar. Em vez de escrever uma frase e deixar o A.I. decidir o que fazer com esta, resolvi orientá-la no resultado que queria, e assim, para além da frase, foram introduzidos os elementos que eu queria ver na composição, as expressões, as poses, a cor, o enquadramento, e o próprio estilo da pintura. Foi um exercício de tentativa e erro, e muitos resultados foram abandonados porque não traduziam o que eu pretendia. O trabalho final, no entanto, não é 100% I.A., uma vez que há também um trabalho de pós-produção feito no Photoshop para eliminar imperfeições e remover/adicionar elementos.

A questão final de toda esta reflexão é saber se, ao utilizar a I.A. como ferramenta de trabalho, é possível impregnar o trabalho com a Função Espelho que devolve ao observador uma reflexão que vai para além de uma simples reação estética.


O resultado desta coleção, que fiz como uma experiência para testar a teoria que tinha levantado, foi impactante para mim. Pude perceber claramente que o que estava refletido em todas aquelas imagens era exatamente a visão que eu tinha para esta coleção. Que funcionava como um todo e que havia coerência entre todas as imagens e o tema da própria coleção. Eu era o autor desse trabalho e não a I.A. que se limitou a executar o trabalho que eu tinha imaginado, da mesma forma que um designer é o autor das cadeiras que desenhou, mesmo que estas tenham sido executadas por um carpinteiro. Que um estilista de moda é o autor das roupas que imaginou, mesmo que estas tenham sido executadas por uma costureira. Que um compositor é o autor da sinfonia que criou, mesmo que esta tenha sido executada por uma orquestra sem que ele tocasse um único instrumento, mas dando instruções a essa orquestra sobre como tocar a sua obra através de uma partitura. Foi o que aconteceu com as imagens que criei. Eu era o autor destas obras, mesmo que fosse a I.A. a executar a visão que eu tinha em mente, o sentimento que queria pôr nelas e o contexto e a narrativa que queria representar.

Passei assim de cético a crente pela experiência direta de ter tido a coragem de não me fechar nos meus próprios preconceitos e testar, na primeira pessoa, este instrumento de trabalho para esculpir as imagens que imaginava na minha mente, pondo neste toda a minha alma e imprimindo assim a Função Espelho só possível quando um coração está presente. E um coração esteve presente durante todo o processo de criação.

Paz Profunda,
Pedro Elias

Poderão ver a coleção "Treasure of the World" aqui:
https://foundation.app/collection/treasure-of-the-world

English version here:
https://pedroelias-org.medium.com/from-suspicion-to-acceptance-a-i-art-5b34092eb455

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